segunda-feira, 24 de setembro de 2012

camiseta AZUL - por Vinícius Linné


O apartamento todo estava cheio dele: o cheiro, a voz, o corpo se derramando lânguido pelo sofá. Ela tinha outra saída? Não tinha. Sorvia-o sem pressa, bebendo-lhe a boca, enquanto as mãos procuravam, desencontradas, colocar fim àquela roupa.

A primeira peça a voar foi a camiseta. Azul.




[uma semana]




Os passos eram perdidos. O apartamento era inteiro vazio. Com se não existisse mais nada, só os ecos do corredor. Nada dele nos armários, nada dele nos roupeiros, nada dele em cima ou embaixo da cama.

Os homens carregaram ontem tudo que era dele. As roupas, os sapatos, as meias que ele insistia em perder de par em par. As cuecas novas, as cobertas herdadas, até o computador, tudo que era dele saiu em caixas.

Nada ficou. E é como se, sem ele - e sem as coisas dele -, o apartamento esvaziasse totalmente. Como se a vida dela fosse conduzida a uma espécie de limbo permanente. Onde tudo é branco e nada é paz.

Deitada no chão, ninando a separação, ela vê um trapo atrás do sofá. Vai até lá e ajunta. Mas não é trapo. É a camiseta dele, que ficou como sobrevivente de guerra. O mesmo cheiro. O cheiro que ela tentava evitar quando jogou pelo ralo os perfumes todos. Agora é como se ele voltasse.

Mas ela não pode deixar. Não pode deixar que ele entre novamente. Ele precisa sair de vez, como se assim a dor pudesse sair também.

Ela vai até a janela e abre. O ar gelado de Porto Alegre lava-lhe a cara, consolador. Ela pega a camiseta e resiste à vontade de colocá-la. Resiste à vontade de viver com ela, como se ainda vivesse com ele. Resiste. 

Não! Ele precisa ir embora.

Então, súbita, ela atira a camiseta pela janela. Imediatamente depois, fecha o vidro e se deixa cair pelo chão, chorando outra vez.

Se ela olhasse para baixo, veria um bêbado, poucos transeuntes depois, ajudar da calçada a camiseta e colocá-la sobre o próprio ombro encardido. Ainda bem que isso ela não verá. Não verá porque a camiseta é a última parte dele que sobrou. E agora o cheiro dele se diluirá no cheiro de suor e álcool do homem da rua. A pele morta dele se embrenhará na pele do outro homem. Os pelos dele – se algum ainda há entre o tecido – se perderão entre os pelos dos cachorros vadios.

A camiseta... A camiseta era a última parte dele que ela poderia ter salvo. E não salvou. Deixou que morresse, tal qual fez com ele.

2 comentários:

  1. Quando a vida é apenas um grande desencontro...
    Há os que se amam absurdademente e seguem, separados.
    Tento entender... Tenho desistido.

    Parabéns, texto totalmente figurativo.
    Si

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  2. Quando a vida é apenas um grande desencontro...
    Há os que se amam absurdademente e seguem, separados.
    Tento entender... Tenho desistido.

    Parabéns, texto totalmente figurativo.
    Si

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