quinta-feira, 25 de outubro de 2012

libertAÇÃO - por Simone Huck


"Libertação", 2011 - Simone Huck
Sua boca era colorida e seus olhos perdiam o cinza dos últimos anos. Sentou-se no chão do banheiro de pernas abertas, não havia mais lágrimas para chorar. Não estava nem cansada, nem feliz, nem triste, nem nada. Nas ausências de tudo, um torpor sempre emerge.
Ali, naquele chão frio, sentia-se leve, e se a janela estivesse aberta, tinha a certeza que voaria por ela como uma pena levada pelo vento. Não pesava nada. Nada ancorava em seus dentes e língua.

Esse torpor perturbado elevou-se até sua consciência e tudo então, pesou. No chão do banheiro havia uma escada, um balde, um par de luvas e dois galões de soda cáustica. Seus olhos brilharam. Para manter sua paz era preciso esvaziar os armários, os bolsos, limpar debaixo dos tapetes, debaixo da cama e entre os vãos dos dedos. Era preciso limpar os vestígios em suas unhas, boca, sexo e alma. Limpar o resto de cada amor naufragado, de cada esperança desiludida. Percebeu que eram tantos cadáveres, tantos ossos, tantas impressões digitais por suas roupas, alma, orelha, sulcos e linfa. Como poderia manter a paz assim? Havia uma multidão de mortos pendurados pelos ganchos de sua lembrança.

Precisava correr.
Precisava limpar.
Precisava manter essa sensação de leveza eterna, etérea, sua. 
Era sua!  

Lembrou que havia um corpo no porta malas do carro e outro no porta luvas. Debaixo da sua cama um saco cheio de braços e pernas que esmurravam e chutavam seu colchão todas as noites enquanto tentava dormir. Debaixo do tapete da sala, várias línguas falavam ao mesmo tempo, atrapalhando o volume do Jornal Nacional. Só a soda cáustica resolveria.

Calçou as luvas e começou o trabalho. Conseguiu juntar dez sacos de cem litros de um monte de anseios anatômicos. Quanto tempo desperdiçado com cada pedaço humano, pensou.
Colocou tudo no porta malas do carro e seguiu madrugada adentro até ser surpreendida por uma barreira policial.
Não tremeu, não piscou, nada abalou.
Abriu a janela do carro e sorriu um sorriso leve e azul que convenceria até o diabo.
O policial sorriu em retribuição olhando o porta luvas que pingava sangue e nem pediu seus documentos, nem quis olhar o carro. Ele, assim como ela, sabia exatamente o significado de um sorriso azul.
Desejou “boa viagem” e autorizou a passagem.

Ela seguiu no ofício de limpar seu estado de leveza até o fim da soda cáustica.

2 comentários:

  1. "Não pesava nada. Nada ancorava em seus dentes e língua.

    Esse torpor perturbado elevou-se até sua consciência e tudo então, pesou"
    Gosto tanto disso que você constrói, há uma unidade bonita em tudo que você escreve, parabéns.

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    Respostas
    1. Obrigada, Dilma.
      Algumas construções engasgam... Mas no final, há um pouco de libertação.
      Bjs,
      H.

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