terça-feira, 4 de dezembro de 2012

cASA - Por Dilma alencar


Hoje vi uma casa e desejei, depois de muito tempo, ter uma.
Chovia e você dançou na minha memória, com saia de cambraia e um terço de madeira lhe enfeitando o pulso, você ria e seus dentes molhados iam mastigando minhas loucuras diárias e derretendo o verde musguento das velhas casas do centro, nossos sapatos cheios de avenidas para navegar só sabiam ir em frente, só sabiam convergir.
O farol vermelho era arte, as gotinhas de chuva embaraçavam o olhar e o sal do rosto ardia na boca.
Uma casa velhinha, grade baixa, margaridas brancas e amarelas enfeitando a entrada e um banco de cimento do lado esquerdo.
Ela parecia cheia de história e silêncio. Eu a decoraria com meu desenredo de cores. Um sofá com qualquer cor gritante, um tapete amarelo, nada de televisão ou de computador.
Eu escreveria na parede da sala “o pastor amoroso”, do Caeiro.  Nos dias de fundura que engessam estrelas, eu abriria a janela de madeira velha e barulhenta, numa manhã de segunda e convidaria o amor para o desjejum.
Tanto já foi dito, perdemos o silêncio. Nos dias de hoje, você é uma memória dançando na chuva e já não dói.
Querer uma casa é uma novidade rachando o peito, e eu quase não falo o sorriso no canto da boca não explica nada do grito que vai tomando meus poros.
Nasceu uma luz. É um parto de uma princesa de fogo e água, aprendo a costurar meu vestido preto e meu discurso de céu. Você entenderia se eu dissesse que engoli uma estrela e estou grávida de mar? Ah, quanta vaidade lhe embuti no olhar, quanta estupidez de consumir paixões agressivas, eu envelheço e não há nada mais bonito que esse tempo.
Irresponsável da violência que atravessa dentes afiados e metáforas eróticas, vou seguindo  flutuante, ferindo a carne da ternura rala que o mundo cospe. Limpo as mãos no sereno e caio no abismo de um verbo cadenciado quebrando a esquina, vertendo luz néon. Volto descalça, o pé caçando pedra onde só tem asfalto, as mãos insanas querendo afeto onde reside cio e força.
Talvez  essa casa velha onde eu quero morar, quem sabe seja a morada que abrigue o espírito solto que sai em noites de lua.
A casa não terá relógios, quero uma velhice sã, ponteiros adoecem. O sereno cheira, a lua perfuma a casa. O centro velho abriga putas e velhos, crianças, mendigos. A casa velha vai abrigar meu cansaço dos dias de trovões anoitecendo antes das três da tarde.
De lá, vejo os bares ao redor, a banca de jornal na esquina, os olhares amarelando no ponto, nas faixas, nos carros, nos cintos do motorista, dos passageiros. Eu vou fechar a janela quando a solidão doer nos olhos, os poucos amigos serão bem vindos e os receberei de braços abertos, eu quero uma criança colorindo o chão com tinta guache e giz, quero uma lousa na parede da varanda, mas por enquanto só tenho coragem de pensar na casa, nela não entrarão cartas amarelas, nem livros úteis, quero a inutilidade dos haicais do Leminski, das cartas do Rilke, quero xícaras bonitas, xícaras são muito importantes. Quero lavar a louça da pia olhando o quintal, tomara que essa casa tenha mais essa janela, vou reunir pessoas generosas a tal ponto que eu consiga lhes verbalizar minhas fraquezas, meu medo de sangue, de agulha. Quero amenizar as vaidades de querer dizer imperativos. Eu quero ter amor nas mãos e sorriso nos lábios.
Quero ser simples, minguar essas lágrimas, ter braços ainda, ter fôlego para sorrir à vida. 
O soluço do sol, o soluço me acordando em enchente de olhar. A casa vai flutuar de paz e o pó dos móveis vai brilhar como lantejoulas , quando de novo a serenidade que fugiu me fizer entender que essas feridas são estrelas , que essa cisma é só linguagem e a minha solidão é - antes de tudo –minha.
Vou rasgar as roupas velhas e nascer de novo numa casa velha e florida, perto de um cabaré no centro velho de uma cidade qualquer.
Se eu beber sozinha no chão da sala e maldizer as flores murchas, escrever uma poesia dionisíaca com giz vermelho, há de chover.
O amor vai nascer perto das margaridas, eu sei. Sei que não pode ser menos que isso. A casa não merece nada aquém, ela espera o amor para a magia do sangue pulsar.
Os papéis e as poesias ficarão acanhados de tanto mar, a casa vai navegar todos os mares e ver toda arte, toda a riqueza das plantas que crescem, todo o milagre das mulheres que engravidam, das mulheres que amam uma a outra, a casa vai conhecer o mundo exatamente ali, no centro nervoso de uma cidade desalmada.
A casa vai transbordar.

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