segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

OBSESSÃO - Por Vinícius Linné


Ele era louco. Completamente.

Você acredita que ele colecionava fotos minhas? Isso mesmo. Não, não só essas duas ou três que saíram nos jornais. Fotos tiradas em todos os lugares. Na minha casa, no mercado, na livraria do shopping, na praia. Em todo lugar que eu estive, ele me fotografou. E isso faz mais de ano. Tem foto de quando eu ainda usava cabelo comprido. Você lembra?

E isso não é tudo. Quando ele me levou até o porão da casa dele, encontrei ainda papéis e mais papéis com a minha letra. Recibos antigos, notas fiscais que eu assinei, listas de compra de supermercado... até o caderno de receitas que eu tinha perdido estava lá!

As tarraxas de brinco, os copos quebrados, os vidros de esmalte, os palitos de picolé, o salto do sapato que eu quebrei no ano passado, o cobertor que doei para a campanha de agasalho, os jornais velhos, os guardanapos marcados de batom, o espelho de mão que ganhei da minha falecida avó, a asa de uma das xícaras azuis, o cadarço dos meus tênis de corrida, as calcinhas que sumiram do varal, a santa de cabeça quebrada, as luzinhas do natal passado e o cachorro que fugiu de casa. Tudo trancado naquele porão. Horrível.

E ele me mostrou com orgulho. E se disse apaixonado. Apaixonado. Acredita? Eu o rejeitei, lógico que o rejeitei. Ele não estava apaixonado, estava doente! Eu devia era procurar a polícia. A polícia!

Não. Eu não fiz isso. Eu não chamei ninguém. Eu não contei o que vi... Eu só passei a evitá-lo. Sempre. Eu já quase não saía mais de casa. Não atendia mais o telefone. Passei a entregar as sacolas de lixo nas mãos do lixeiro. Eu não conseguia mais viver minha vida. O tempo inteiro eu tinha a impressão de estar sendo vigiada. E então eu o vigiava. Eu ficava escondida atrás da cortina, espiando, esperando qualquer movimento. Esperando o momento em que ele atravessasse o meu portão com uma faca enorme nas mãos. Eu já não dormia, só olhando as luzes da casa dele. Sempre acesas. Eu ficava pensando no que ele estaria fazendo. Será que comia pensando em mim? Será que vigiava minha casa? Será que – Deus me livre – se masturbava no porão olhando as minhas fotos? Ele era louco.

Até que chegou o dia em que ele finalmente agiu.

Ele começou a sair de casa com caixas e mais caixas, deixando todas no meio fio. Eu sabia o que tinha dentro delas. Eu reconhecia as fotos derramando de lá. Eu podia ver a trilha de coisas que ele perdia pelo caminho. As minhas coisas. As coisas que ele, louco, roubara dos meus restos.

Ele botou tudo lá na calçada e deixou.

Eu suava.

O que ele estava planejando? Por que essa novidade agora? O que ele queria?

Nenhuma resposta... Ele saiu e nenhum movimento foi feito. Eu passei o dia inteiro ali. O dia inteiro esperando. Quando anoitecia, passou o caminhão do lixo e recolheu todas as caixas. Então era esse o plano? Era isso? Ele estava se livrando das provas todas de sua loucura? Qual seria o próximo passo? Vir atrás de mim? E como eu provaria então que ele era um louco? Eu deveria ter chamado a polícia. Você não acha? Mas eu não chamei. E daí veio o pior.

Agora eu já não podia sair de casa. Não podia comer. Não podia dormir. Se eu deixasse a janela por um minuto, um minutinho sequer... Só Deus sabe o que ele faria. Não é? Ele tinha limpado o terreno. Eu era presa fácil. Eu estava completamente perdida.

E ele passou a sumir. Sumir por longos períodos. Geralmente à noite. Às vezes ele sequer dormia em casa. O que estava tramando? Teria sido melhor se eu não descobrisse. Um dia eu ousei. Saí na mesma hora que ele. Saí decidida a terminar com aquilo, resolvida a ser morta ali mesmo se precisasse, tinha cansado daquela tortura.

Ele me cumprimentou como cumprimentaria qualquer vizinha.

Deu ‘Oi’, sorriu e seguiu apressado.

Fiquei lá, parada, pateta, lívida e viva. Naquela mesma noite, quando ele voltou, trazia consigo uma moça. Eu quis fazer alguma coisa, quis gritar, quis defendê-la, quis avisá-la da loucura dele. Não consegui.

Mas ele não fez nada com ela. 

Nada de mal.

E ela continuou vindo. Então era isso? Então ele se livrara de todas as minhas coisas porque arrumara alguém? Arrumara uma namorada? Ele era louco! Desfizera-se de tudo que juntara com amor e risco... Não era justo.

Comecei, então, a deixar minhas coisas na varanda dele. Minhas calcinhas, o trinco da porta, o meu travesseiro, um álbum inteirinho de fotos... No começo ele devolvia. Colocava tudo de volta na minha porta. Porém, como eu colocava de volta na varanda dele – louco – ele passou a colocar as coisas na lixeira, direto.

Então ele não era mais obcecado por mim? Não mais?

Um dia quebrei uma das janelas dos fundos e entrei na casa dele. Esperei por ele no quarto. Nua. Ele não voltou naquela noite. Nem na seguinte. Nem na outra. Quando, finalmente, ele voltou, estava acompanhado daquela puta. De novo aquela puta, com aquela cara de sonsa. Era demais. Era demais pra mim. Ele era louco. Era louco de me trocar por ela.

Antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, eu havia enfiado a tesoura bem fundo naquela barriga de vaca dela.

6 comentários:

  1. Mesmo não querendo alguém, continuamos querendo a devoção e o amor desse alguém.

    Ególatras, é o que somos. Loucos ou não.

    Fabi

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  2. Linné, tô ficendo tiete desses seus escritos. Gosto muito dessas coisas doloridas/coloridas que você escreve.
    Você dá verbo à loucura .Um xero.

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    1. Cadum escreve do que tem por dentro, decerto. :p

      Obrigado sempre. Abraço.

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  3. Completamente,maravilhoso... Parabens!!

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