terça-feira, 18 de dezembro de 2012

sOBRE AQUELAS PERGUNTAS - por Dilma alencar


Gostava do seu cabelo sobre meu rosto, seu jeito de me acordar, sua mão subindo pela nuca desgrenhando meu cabelo amassado, compondo minha feição de preguiça.
O dia sorria, logo cedo um jardim repousava aos pés da cama.  Num encanto de água teu corpo acordava e o mundo estava nele, angelical e irresponsável, tudo que se queria num corpo outro. Não fosse o fascínio de uma absoluta entrega de poros, de pó de túmulos futuros, de sangue, não fosse a dureza de ter as armas todas dispersas no chão, e o coração na garganta, eu teria fugido. Mas minhas pernas trêmulas de um cansaço de deus, só sabiam de seus passos. Tudo era imã, como naquele dia improvável em que eu voltei para casa, desistira de ir ao trabalho na esquina de casa.
Você tomava banho e ouvia meu álbum de Marisa, eu abri a porta, queimando de saudade do nosso lençol. Seu rastro, roupas largados no chão. Entrei no chuveiro de roupa, bolsa, sapatos. Você recebeu meu repente como quem vê um eclipse acontecer pela primeira vez. Com o cuidado delicado de não abandonar meu olhar brilhante, você me despiu: bolsa pesada da água quente do chuveiro, fones de ouvido, colar, anéis e brincos. A brandura do cansaço. O meu mundo reunia-se em torno do seu umbigo.
 Imã: quando você me deu aquele buquê amarelo, seu rosto numa expressão que eu não sabia dizer, de quem descobre um segredo antigo, um mapa das terras virgens.  Eu agarrei sua mão lhe cobrando verbo, você sorriu e disse que meus olhos dançavam entre as flores, intensos e livres. E me abraçou como quem abraça uma fortaleza.
Li em algum lugar que “os anjos são ateus e só acreditam no que é matéria”, imediatamente me lembrei de seu corpo.
Como foi mesmo que a poesia invadiu a cozinha, o corredor, o jornal embaixo da porta, minha saia, minha língua, meu xampu, minha nudez, meus modos verbais?
O som macio de seus pés descalços indo até a cozinha ainda me faz abrir sorrisos que me assustam de tão fáceis.
Aos poucos a nossa linguagem foi tecendo corda, o amor fincava raízes nos nossos estômagos e gargantas. Estrangulava pequenas liberdades esquecidas,e meu zelo pela liberdade de olhos soltos e minhas mãos no mundo foram ferindo sua compaixão. Compaixão: deriva do latim, compassio “capacidade de sentir o que o outro sente”. Não tínhamos um dicionário etimológico, quiçá um manual sentimental. Quando é que é só tesão e fogo? Quando é que começa o caos, como sinos de igrejas invadindo sem permissão lares baldios?
Sentimentos que matam o instinto da vida e nos fazem fiéis a um corpo que não é o nosso, eis a loucura que sentíamos, morremos merecidamente. A devoção aos sinais virara rito, o ritmo perdia o tempo do acorde, e matamos com velas e orações a gratuidade dos gestos.
O desespero embutido no amor vazava pela geladeira, entre sua geleia e minha cerveja, entre sua roupa passada e minha preguiça.
Estupidez, não ter saído antes daquele luar eterno em que tocamos Deus.
Corrente no tornozelo: anel de compromisso, metáforas angustiantes de um fim próximo.
A nossa luz preferida, aquela depois de chuva à tarde, quando a ar flutua prata e todas as cores adquirem visgo, como planta bem regada. Ela agora me enche os olhos de vazio e meu café esfria enquanto meu olhar se perde na distância dos dias.
Ainda arrasto correntes no tornozelo. Um dia,  um anjo teve encantamento de me roubar aquele peso, mas devolveu após uma semana, dizendo que não cabia em sua casa, embora bonito, soltava  ferrugem nas nuvens virgens de dor e peso.
O que se alcança querendo voar?
De um bar numa esquina movimentada, os copos e os corpos são tomados de intenções medíocres de um gozo pobre de espírito e anêmico de poesia, há quem diga que há amor nas tentativas, quantos goles mais de vodca e memória de seu gosto? Quantos dias arranhando a chuva? Comendo a guerra?
Quando escrevo e me lembro da estupidez crescente, eu rio promessas absurdas nesse dezembro chuvoso, como aquele que você me apresentou deus em forma de água.
Abençoados sejam os que já voaram e sabem da inutilidade sagrada de ter amor e desespero!

2 comentários:

  1. Sempre que termino de ler seus textos não consigo perguntar nada. Há muito mais por perguntar, sempre. Nem todas as respostas existem.
    Chorei. Como em quase tudo que você escreve.
    Parabéns, Dilma Alencar !!!
    Bjs,
    S

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  2. Obrigada pela leitura, pela generosidade do convite para escrever aqui no febre. A escrita me ajuda tanto, consigo me perdoar mais depois de ler o que escrevo, consigo sentir meu caos um pouco mais organizado, embora seja minha cisma o que me dá palavra.
    As doem, escrever organiza um pouco.
    um xero.

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