quinta-feira, 16 de maio de 2013

aquela DIARISTA FILHA DE UMA PUTA - por Simone Huck

Amélia, uma contemporânea mulher de verdade, abriu os olhos e não estava em seu quarto. As costas doíam. Os pés estavam naufragados em meio à talheres sujos do último jantar. Sentia cheiro de restos de cebola e óleo. O teto, que não era do seu quarto, estava amarelado e úmido. Acordou em cima da pia da cozinha ao lado de um exército invencível de pratos, talheres e panelas sujas para lavar. Não era possível. Mas também não era miragem.

Era casada com Acácio - que de inocente não tinha nada - e que saía de casa logo cedo, garantindo a grana para manter todos vivos. Ponto. Tinham três filhos. João, Pedro e Tiago. Além de sete gatos com sete vidas cada um e que, se somados à vida de Pedro, João e Tiago, seriam dez seres com sete vidas. Fez as contas mentais e chorou com a estimativa de setenta longas vidas repetindo, repetindo, repetindo. Dez vezes sete significava mais pia. Mais louça. Mais cebola e óleo. Menos ela. Amélia não tinha um tempo para chamar de seu. Chorou na água suja da pia entulhada. Sua lágrima caiu em cima da bola de óleo podre que boiava, formando um coração que se desfez rapidamente. Ironias da visão. Fúria heterogênea. Onde estava Mabelle? - que de querida não tinha nada.

Mabelle era descolada. Tinha carro e facebook. Mascava chicletes e sempre que ia guardar um livro na estante da patroa, vasculhava algumas páginas até encontrar os grifos e lia, relia, tentando decorar. Sonhava ser culta como Amélia. Era empregada diferenciada, o que chamou a atenção na hora de sua contratação. Amélia imaginou que ela poderia ajudar com João, Pedro e Tiago - que de discípulos não tinham nada - os gatos, a louça e as cuecas de Acácio. Assim, Amélia, que acabara de lançar um livro sobre arte chinesa por uma editora bacaninha e renomada, poderia viajar pelo Brasil todo divulgando seu trabalho. Nas horas vagas, ela era professora de história da arte. Em todas outras, era dona de casa, esposa, mãe e ainda alimentava gatos, cachorros, passarinhos e qualquer forma animal de vida que lhe pedisse socorro. Mabelle era a solução de todos os seus problemas. Ela dirigia. Tinha seu próprio carro. Sua independência seria a alforria de Amélia para o mundo. Fim dos navios negreiros. Santa Princesa Isabel. Com certeza, ela também teve uma Mabelle para ajudar com seu império.

Naquela manhã, porém, Mabelle não apareceu. Desgraçada, maldita, vaca, filha de uma puta. E agora? A louça, a casa, a pia, as lancheiras, a escola, os rascunhos, a agenda, o skype com a editora. E agora? E agora? E agora? Não havia eco. Nem resposta.

Não pensou duas vezes. Vacas merecem um pasto. Mabelle não poderia jamais ter feito isso com ela. Ainda mais depois de ter lido Feliz Ano Novo. Rubem Fonseca tinha razão. Agora Amélia sabia de onde vinha àquela satisfação sangrenta. Sorriu.

Afundou as mãos na pia suja e na água imunda. Achou a faca de cabo branco. Trancou as crianças em casa e disse que voltaria em quinze minutos. Entrou no carro e foi até a casa de Mabelle. Apertou a campainha enquanto a empregada mentirosa olhava pelo olho mágico tentando pensar rápido numa desculpa esfarrapada. Abriu a porta e Amélia nem precisou ser convidada, já estava dentro da casa.
Nem deixou Mabelle falar, abriu a boca e com tamanha satisfação gritou sua vaca, sua vaca, sua vaca inúmeras vezes. E quanto mais gritava, mais apunhalava Mabelle - cujo nome significava minha querida.

Juntou todos os pedaços de Mabelle em vários sacos. Uma vaca merecia morar no pasto. Ponto. Nessas horas, ficava feliz por morar em Presidente Prudente, um local afastado, próximo de várias fazendas onde a pecuária de corte tinha tradição nacional. Na estrada dezesseis haviam vários pastos. Deixaria ali, pedaço por pedaço da vaca maldita que colocou seus planos por água a baixo. Água suja, repleta de louças.

Espalhou Mabelle pelos pastos como pétalas ao vento. Não sobrou um fio de cabelo. Voltou para casa aliviada. As crianças estavam jogando vídeo game na sala e nem notaram quando ela entrou. Foi até sua mesa de trabalho e dentro do seu livro, o que está fazendo sucesso no Brasil todo, pegou a lista de candidatas. Gostou de Gabriela, cujo nome significava a enviada de Deus. Não dirige. Não tem facebook. Não masca chicletes. Só cursou o primeiro grau e colocou uma observação enorme no final do curriculum “farei qualquer coisa para ter uma patroa para chamar de minha”. Amélia sorriu aliviada. Agora teria tempo para ser uma professora com um livro de sucesso.

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