terça-feira, 14 de maio de 2013

aVELÃ E MARGARIDA - por Adilma Alencar.


Ela disse sim, decidiu tentar, há mais de um não que não aceitava um convite.
Os primeiros gestos tão gentis, a avenida vazia, a cidade sem fim, o desejo aceso. Acelerar o carro e despir fantasmas abraçados à cintura, acelerar.
Às três da madrugada, na cozinha estranha, matava a sede e morria de fome. Sentou no chão, amparada ao fogão, estirou as pernas.
Uma bomba silenciosa no estômago. A pele fria que dançara no sereno daquela noite, que roçava mentiras em gestos languidos, a mesma pele, agora, chorava, era açude de sertão, era açude esperando anunciação.
Cisma de um amor sem remédio, de um tempo que não escorria, insistia em voltar cada vez mais nítido.
Soluçou baixo, engoliu algumas verdades, aceitou a fome, se entregou ao cansaço.
Manhã. Uma fresta de sol aquecia os seios nus, o vento frio e o som da cidade acordaram a preguiça comum, que dividia a mesma cama. Ela se encontrou apertada entre braços quentes, abraçava também, como se um abraço pudesse alimentar a fome adormecida, pudesse enfim, a vontade ser maior que o medo, e o afeto vencer a rotina de desacreditar.
Avelã, geleia de amora, discos do Lupicínio, isqueiro amarelo, sapatos marrons, leite.
Bebiam leite frio, comiam bolachas de gergelim. Corpos em pele, olhos luzentes em caras amassadas.
O dia fuzilava de amor, a sala iluminada era tomada de um calor tímido. A nudez tão natural como a fome, não incomodava, era ingênua como tem de ser, era rotina do corpo o susto do sexo, era angustia da alma a falta de morada do desespero.
Ela estava feliz, porque pés descalços e abraço de manhã eram coisas caras à moça.
 É de outra tessitura o enredamento de seus dias comuns. É de alegrias sutis: comprar um bom livro de poesia, conversar com amigos que ainda sabem chorar, ter uma palavra nova pra dizer de dores ancestrais, ouvir música o dia inteiro e reparar nas nuvens.
Ela é mulher doce, é frágil e pode matar com uma sentença de silêncio e ausência. Às almas rasas de sentido e cegas de desejo, reserva a sua piedade. Ela se sente ofendida por palavras órfãs de bocas humanas, palavras de quem já deixou de ser e virou vazio, coisa oca.
Era doer e amar, era doer e sangrar, não via outra forma, ela não sabia colher flores sem amor, cozinhar sem afeto e passar batom rosa domingo de manhã.
Seu amor beirava a loucura, certa vez comeu margaridas para sepultar uma amizade minguada, para encher a barriga de pétalas e os olhos, de culpa branca e amarela.
A manha desfalecendo seu corpo, o instinto sustentado sua vitalidade e a imensa fome, a fome sem nome em guerra com as unhas que crescem, com a luz que atravessa seu dia, o seu dia no mundo.
Ela vai e não volta, é de tanto amor que tem.

2 comentários:

  1. "Ela vai e não volta, é de tanto amor que tem."

    Tão bonito, Dilma. Uma coisa que gosto sempre e que gosto muito em seus escritos é do ritmo. A construção inusitada da dor e das palavras, da espera e do amor. Bonito, bonito, bonito. Sempre suspiro.
    Beijos de saudade,
    Huck

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  2. Obrigada,Si.
    Sua sua fã,tiete, sempre.
    Um xero.

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