segunda-feira, 30 de setembro de 2013

dEMAIS - por Vinícius Linné

A noite era urgente, mas o sono não se dava conta disso. Bárbara estava deitada, a mão do marido sobre um seio, o leve ressonar dele a dar tom ao tempo, as frestas da janela desenhando linhas em branco na parede e seus olhos muito abertos, sua mente muito desperta, perguntando sem pausar: "É demais querer mais?"

O apartamento quitado, as crianças no quarto ao lado, os armários da cozinha bem planejados, como ela sempre sonhou. As contas pagas, comida suficiente para estragar na geladeira, dinheiro para as viagens e tempo para tudo.

"É demais querer mais?"

É demais querer a música da rua? As mulheres dos bares? Os ônibus que, perdendo pedaços, deixam a cidade para não voltar? É demais querer outra vida, outro tempo e nenhum filho, nenhum marido, nenhum apartamento amplo com vista para o mar? 

É demais querer mais do que o vazio do peito? 

É, lhe respondia, sem que ela ouvisse, a vida. É demais, dizia a ela, acariciando-lhe os cabelos enquanto o sono não vinha. É demais porque vives o sonho que os outros nem têm. É demais porque eu te deixei brincar eternamente de boneca, de casinha, de papai e mamãe. É demais porque eu cuidei de ti como se tu fosses minha filha mais querida. É demais porque arranjei destinos, fardos e fatos que só te conduzissem ao sonho perfeito. É demais. É demais porque desejas a infelicidade, depois de eu te tecer a realidade toda em cor de rosa.

"Deve ser... deve ser demais", resignou-se Bárbara, virou para o lado, abraçou o marido e depois de algum tempo dormiu. Nos sonhos que teve, sofria infortúnios, era abandonada, ficava sozinha, fugia dali apressada, sem levar nada, nem o nome que era seu. Dormia nas estradas, pegava caronas, transava com estranhos e estranhas. Morria, por fim, para nem ser identificada, descendo penhasco abaixo em uma estrada deserta. Acordou molhada de suor e fluidos. Passou toda a segunda-feira a cantarolar.

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