terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

pORQUE- por Adilma Secundo Alencar.

   Porque Madalena se dizia só, mesmo na confusão dos bares,nas orações de domingo e o no peito aberto cheio de raízes molhadas, mesmo depois de um amor luzente que por dias levou seus olhos sobre um pires.
    Porque Madalena acredita no amor,mesmo depois da travessia do abandono frio numa manhã fria de junho, mesmo depois de perder a vontade de parir,mesmo depois de rasgar as passagens e adormecer os sentidos.
  Porque Madalena sabe fazer carnaval, mesmo nua daqueles confetes fluorescentes, mesmo depois do calvário e da vontade do passo para trás,mesmo depois do luto nas unhas e da solidão da carne.
   Porque Madalena é assonante em a, e provoca pulmões cheios de desejo carmim, mesmo depois do afogamento no sal, mesmo e apesar dos nãos e das pedras atiradas a sua porta.
   Porque Madalena é palavra, mesmo depois dos compêndios secos de tantos homens e do açoite de palavras acostumadas, mesmo depois do soluço de uma noite sem lua.
     Porque Madalena é mato, mesmo e apesar das sepulturas dentro do peito, das paredes mofadas e da nódoa nas mãos.
   Porque Madalena é rasgo,é fresta, é cicatriz, é sina, é sangria e semente.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

pRESUMIR - por Vinícius Linné

Quantas coisas você presumiu quando eu sumi?

Você presumiu que eu não voltaria, então apagou as fotos, os traços, os riscos de giz e as manchas dos meus pés nas paredes azuis. Você limpou os armários, arejou o quarto e despejou na pia o resto do perfume meu. Você queimou os papeis, doou os livros e deu meu canário para o cachorro comer.

Você colocou o vestido bonito e saiu e dançou e cantou e voltou para casa já com outro não-eu. Você deitou com ele na cama que era nossa, colocou meu último CD de fossa e disse meu nome baixinho bem na hora H. Depois me dormiu e esqueceu.

Você presumiu que eu arranjei outro alguém, lhe fiz três filhos e comprei um novo canário, dessa vez belga. Tudo em meia hora só. E por isso vingou-se até me rasgar os vestidos e me arrancaria das orelhas os brincos, seu eu não tivesse lhe segurado de vez.

Mas, meu amor, eu só fui ali comprar cigarros!
Não me enganes que tu não fumas.
Eu sei. Eram pra ti.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

a FORÇA DOCE DE AÇUCENA - por Adilma Secundo Alencar.

Eu não sei dizer direito. E se eu fizesse de nossa natureza verbo, o que eu diria desse meu olhar tonto de desejo? Qual seria o nome dessa sua  violência açucarada de canela e cereja? 
Essa explosão em força.
Você tomou com a força de seus olhos e a ousadia de sua boca todos os meus advérbios de intensidade. E de tanto e tanto desejar sua língua, esse verão de 40 graus fez açude nos nossos lençóis amassados.
Olhando sua pele sob a luz da lua, fez sentido desde a pedra à escritura em ofício o registro de seus encantos de mulher. No visgo do desejo, na sagração da carne em oferenda ao mar entre suas pernas, se deleita no arrebentar das ondas, enquanto cai por terra o pudor imoral de quem desconhece rios e raios desse fevereiro agudo.
Rosas e letras, riscos e rasgos. De sangue e de letras surgem cicatrizes e flores, e quando você me dá sua mão, eu seguro meus verbos mais bonitos. Os meus signos nus descansando nos seus braços são seus. São suas também minhas horas de dengo, minhas receitas de bolo, e as músicas do Marcelo Camelo.
Eu queria tecer uma colcha de retalhos com suas cores, fazer uma colagem com seus cabelos curtos, seu batom rosa cintilante, seu vestido azul, seus cílios descansando no meu travesseiro, sua mão pequena tomando minha nuca, suas cerejas, seu joguinho de jujubas no celular (que certamente tem outro nome), seu playlist, bolo de limão, caipirinha de maracujá, Clarice, sol de três da tarde, cio, rede, grama, sessão das seis, salto, rímel, peitos queixo, passos, pele, pranto, letras, o livro das flores, as músicas do Caetano, a doçura de Caeiro.
Mas eu não sei tecer essa literatura de plasma, de folhas, de algas que tanto você gosta, eu só sei olhar, com um jeito besta e meu, eu só sei o susto de ver você arrebentando tudo como o mar em dia de ressaca.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

sENHORA CABELEIREIRA - por Vinícius Linné

Clarissa não brincava de médico. Não queria ter ciência do corpo alheio e tampouco que conhecessem o seu lhe interessava. Mesmo assim, criou uma brincadeira de se aproveitar: “Senhora Cabeleireira”. Como se pressupõe, não eram os corpos o interessante, mas as cabeças, ou, antes ainda, os cabelos; tudo bem, confessemos, o que realmente interessava à Clarissa eram as carícias.

Havia um menino na rua de baixo (qual era o nome do menino?) que brincava com ela e procedia bem assim: batia na parede para fazer de conta que era na porta, depois dizia: “Senhora Cabeleireira, vim cortar os cabelos! Quero o mesmo de sempre!”. Ditas essas frases, ele se sentava no degrau mais baixo da escada e, de costas para Clarissa, deixava que ela o penteasse demoradamente.

Não havia corte, havia Clarissa de olhos fechados, deixando os dedos brancos percorrerem os cabelos do menino (quase consigo lhe dizer o nome, mas ainda não). Havia a sensação quente que aos poucos amortecia e disparatava a menina. Clarissa já adivinhava que algum dia dedos como os seus se embrenhariam naqueles cabelos escuros, grossos como pelos de cachorro, e ali se contorceriam de prazer.

Às vezes, sozinha, Clarissa lembrava da sensação e sua mão dançava no ar, como se repassasse contornos, redemoinhos e o arrepio causado por um toque desavisado na nuca do menino (cujo nome ainda não digo / não lembro). A nuca quente, às vezes suada de verão, às vezes picada de insetos, às vezes pedindo um beijo que só mais tarde viria, eriçava-se toda. E Clarissa terminava com o brinquedo então, ofegante.

Um dia o menino (e talvez seu nome fosse mesmo “menino”) cansou de ser o cliente. Queria ser ele o Senhor Cabeleireiro. Melhor se fosse, ainda, com outro menino. Assim podia fazer-lhe a barba também, como Seu Diógenes lhe fazia com o pai. Mas contentou-se com Clarissa. Alheio aos intentos da menina com aquela brincadeira.

Quando ela disse as palavras, elas saíram tremidas. Era demais a sensação oposta, entregar-se, ser ela a selva branca de inverno na qual os dedos do menino se perderiam por descaminhos e desvios, cabeça, nuca, costas, demoradamente. Sim, ela esperava que fosse demoradamente.

Ele, obviamente, não tinha tanto tato. Puxava forte e fazia dores. Seria sempre assim com os meninos, Clarissa tinha dessas intuições. De todo modo, continuava muda, de olhos fechadíssimos, enquanto era tocada. Acariciada. Quase lambida pelos dedos dele.

Muito tempo passou sem que Clarissa abrisse os olhos ou o menino (sem nome?) dissesse palavra. Ele estava concentrado em fazer nela uma trança. Uma trança longa e dourada. Linda. Desde a testa até além da altura da nuca.

Ah, Clarissa... Ela deveria ter adivinhado quando o silêncio foi cortado por um estalo rápido. O menino (e nunca mais saberei seu nome) lhe cortou a trança rente ao couro. A trança longa e dourada e linda repousava feito um rabo de bicho morto nas mãos dele. E ele ria, ria enchendo a rua e a tarde de som. Clarissa abriu os olhos incrédulos e não sabia o que sentir. Primeiro viu aquele rabo, aquela corda, aquela trança de sisal e pensou ser só piada. Ele a devia ter trazido escondido. Brincava com ela, aquele menino, um maroto.

Depois correu afoita para dentro e nem teve tempo de chegar ao espelho. Apanhou na cozinha. “O-que-vo-cê-fez-com-es-se-ca-be-lo,-Cla-ris-sa!” Soletrou a mãe às palmadelas. E então tornou-se verdade. Verdade. E nenhum tapa doeu mais do que ele ter feito aquilo de verdade. Ela se entregara e agora tinha um buraco entre os cabelos. Um buraco que levaria meses e vergonhas para ser tapado, bem na frente, como insígnia, como marca de vergonha.

Clarissa nunca mais brincou com aquele menino. Sequer o olhava quando se cruzavam na rua. Mesmo depois de crescidos os dois.

O menino nunca mais se desfez. Nem daquela trança, nem daquela tarde de verão, nem do que sentia por Clarissa.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

nÃO SAIR - por Adilma Secundo Alencar.

Ana resolveu não sair.
Um luto sem cor cobria seu corpo e seus olhos vivos já não diziam.Depois da tempestade daquela semana,perdeu o coração numa correnteza,numa correnteza urbana, dessas que jogam os móveis nas praças, e quanta exposição.Suas roupas íntimas boiando,seus anéis, um estômago exposto.
Ana chorava, seu colo inundado de flores brancas emanava um doce melado, cheiro visguento de amor agonizando.
Ana é ainda mais bonita do que seu corpo diz, ela faz amor como quem dança.
Mas Ana resolveu não sair.
Não viu passar os olhos desejosos de tantos homens,nem sorriu quando um vermelho morno tomou o horizonte e aqueceu sua cisma.Ela fechou a porta de sua casa,se sentou, se deixou na agonia de não enxergar, suas mãos pequenas já não queriam abraçar vontade nenhuma.
Uma mulher em correntezas,só, entre talheres sujos,roupas usadas e um abandono de criança.Soluços, as xícaras, o rosto vermelho escorrendo rímel,as havaianas azuis alfinetando sua saudade, e um anel decepando seu dedo,amputando seus abraços, anulando sua primavera,seu verão que é tempo de escândalo foi anulado por pedras no canto dos olhos.
Talvez Ana volte a escandalizar um coração,talvez Ana escreva uma carta de amor, quem sabe talvez nasça uma flor rebelde no seu peito,mas por hora,Ana resolveu não sair.
Ana resolveu não sair.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

dE QUE SÃO FEITAS AS PEDRAS - por Vinícius Linné

"Ághata" por V. Linné


Ághata é uma boneca de sabão, mas modelada em cigarro, rancor e cancro. Quem poderia querer brincar com ela? Ninguém, nem Ághata.

O cigarro é sua dose diária de autodestruição. A fumaça azul sobe e empesteia ares, mares e cabelos platinados, a turvar os pensamentos e a misturar-se à fumaça de cafés tingidos. Ela não se importa com o cheiro ou o gosto sempre de incêndio que a boca tem. Ela não se importa porque é toda ruínas depois do sinistro.

O rancor é a raiva triste que lhe corrói e lubrifica os mecanismos. É só de rancor que ela se mantém a funcionar. Suas veias incham e se dilatam enquanto um sumo verde e visguento as percorre. Ela odeia. Ághata odeia todas as coisas vivas e aquelas que ainda estão por se fazerem inventadas. Ághata também se odeia, até a raiz das unhas, vermelhas, naturalmente. E demonstra esse ódio. Meu Deus, como demonstra esse ódio, sempre pleno em seus olhos de boneca que se fecham verdes quando a deitam. 

O cancro é seu material mais precioso, sua joia, seu estigma. Ela tem orgulho dele e o esconde como a ostra oculta sua pérola. Ele é a sua prova, a sua indulgência, a razão de tudo, do rancor ao cigarro vagabundo. Vez ou outra ela rebrilha o cancro ao sol. Como para lembrar aos outros de que ela é mártir das culpas alheias. 

Ághata é uma boneca de sabão, mas modelada em cigarro, rancor e cancro. Quem poderia querer brincar com ela? Ninguém, nem Ághata.

Apesar disso, compraram-na na loja. Apesar disso, colocaram-na dentro de uma casa de bonecas, toda branca e brilhante. Apesar disso, deram-lhe outro nome e roupas novas. Apesar disso, arranjaram-lhe uma marionete por marido e um bebê por filho. Apesar disso, deram-lhe vida. Sim, bastou um Sopro de fumaça e a boneca fez-se carne.

Carne, cigarro, rancor e cancro, o mesmo material de que são feitas as pedras.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

sUA CASA - por Adilma Secundo Alencar.

Foi numa tempestade que tudo começou. A virtualidade me apresentou à sua poesia de semântica aguda, os meus olhos correram velozes nas suas esquinas sintáticas e suas letras me levaram às suas lentes, embrenhados ali naquele canto virtual, os signos do recorte e do corte escorrendo uma melancolia enquanto passava café.
E depois, a avenida, a rua, o aconchego de uma casa febril, onde me apresentou um hóspede menino e homem, lírico e triste na sua alegria de amor e serenidade. 

Ela recortou uma parte minha e eu apareço para cuidar da casa que ela ergueu, com o cuidado que eu não teria, ela pintou as portas, mediu os espaços e abriu a casa como uma tesoura corta um pedaço de seda, num rasgo suas letras nos trouxeram estrias de uma cidade inchada, rosas murchando, brotando,suicidas nus no trampolim insensato da paixão morta. Pelas suas lentes um homem levando uma carroça se agiganta levando o dia, levando o mormaço do desespero, deitado no concreto que a criou, os homens saltam gigantes, os guarda-chuvas pulam, bailarinos da garoa.

Seu olhar descortina uma cidade que é só dela, e suas letras tempestivas arrastam mulheres e edifícios. 

Nessa casa,eu e ele esperaremos por ela,zelaremos de suas escolhas e ansiosos,esperaremos que ela volte,rasgando tudo como arma branca.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

a CASA - por Vinícius Linné

"Paradigma" por Simone Huck
Foi pelo riso que viemos. Viemos por ruas esfareladas, a avistar um horizonte no qual o sol estava sempre a se pôr. Viemos por desconstruções, sem vê-la, confiantes apenas. E silenciosos. Meu Deus, como viemos silenciosos. Vez ou outra nos olhávamos e sorríamos, mas nunca nos falamos enquanto estávamos em meio aos escombros.

Talvez fosse medo.

Medo de, ao falarmos, desfazermos o riso que nos guiava. Medo de desmoronar os restos de prédios, de arrebentar os últimos e solitários fios que ainda se agarravam a alguns postes. Medo de que os cacos se partissem se alguma coisa disséssemos.

Nada falamos e o riso nos trouxe para a única rua em que ainda existiam árvores. A única casa com um riso dentro.

O riso bom era estampado nos papéis de parede, bordado nas cortinas, enferrujado nas panelas cheias d’água de chuva, incrustrado nos azulejos, cascateado chuveiro abaixo e pingado sem parar na banheira branca.

E então ela, dona da casa, dos caminhos e do riso, estava lá, braços abertos, espalhando beijos, recolhendo malas e servindo cafés fortes.
"Café do ponto" por Simone Huck

Meu quarto seria esse. O de minha companheira de viagem seria aquele. Café bom quando bem quiséssemos e papéis em dias certos, sobre as escrivaninhas, nos quartos. E nosso riso se imiscuindo ao dela, contornando móveis e criando pássaros para as quinas das árvores.

De repente, porém, a casa começou a ficar muda. O riso que nos trouxera foi, aos poucos, substituído por uns suspiros. Suspiros que infiltraram pelas paredes, a desenhar rachaduras e a fazer poças no carpete. O início do silêncio nos mantinha em um permanente arregalar de olhos, com medo de termos que abandonar o verde e voltar ao âmbar e à areia das ruas.

Tateamos por toda casa, mas não havia como colocar a mão no lugar exato em que lhe doía. Os suspiros vieram fundos e chegaram até a porta da frente. Foi então que ela, a dona da casa, dos caminhos, do riso e, agora, dos suspiros, deixou-nos na mão a chave de prata. 

Seria egoísmo pedir que ela ficasse.
Seria egoísmo deixá-la partir.

Entre dois egoísmos, respeitamos a compaixão dela.

"Chuva" por Simone Huck
Como fechar tudo e partir com ela, se ela tinha caminho e nós não? Como deixar a casa, se as videiras que ela plantou morreriam sem nossa água e atenção? Como deixar as pilastras caírem e as paredes tombarem, se ela teve tanto trabalho para erguê-las?

Ela fizera o refúgio por nós, construído de riso e dor. Se agora era nossa a chave, só nos cabia continuar. Com riso e dor. Sim, abriremos as portas nos mesmos dias marcados, para construir ninhos do que ela deixou. Aconchegaremos papéis e prantos, sentimentos e cafés prontos, mantendo a lareira acesa, sempre acesa, para que tudo fique na temperatura exata de febre. Febre Crônica.

Continuaremos a rir aqui. Um pouco menos alegres, é verdade, mas com a certeza de que nosso riso a guiará de volta. Nosso riso a encontrará no momento certo, varrendo montanhas, passando por pontes caídas, contornando  concretos desfeitos, como o riso dela fez um dia, até nos encontrar. Que nosso riso a encontre e que ela venha caminho afora, que ela venha embora. Embora para sua casa, Simone.

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Esse texto de caminhos é recoberto de carinhos e homenageia a ela que criou essa casa e nos trouxe, Adilma e eu, até ela. Sim, é um texto de despedida. A partir de hoje, Simone recria outros refúgios e nos deixa de responsáveis por este. Que possamos cuidar de tudo, fechar as janelas quando houver vento, não mexer no gás nem na luz, trancar bem à noite e deixar as plantas vivas até ela voltar, pronta para um café.

"Mutante e insensato" por Simone Huck