domingo, 2 de outubro de 2016

dOIS SÉTIMOS - por Vinícius Linné

Eu queria que você me amasse. Não a ponto de cometer loucuras por mim, mas a ponto de eu poder pensar que sim. Não a ponto de você entrar no primeiro ônibus, de madrugada, cruzar o estado todo e chegar aqui de manhã, só porque eu pedi por telefone. Mas a ponto de eu ter seu telefone. Porque assim, sem dizer nada, fingindo nem sentir, tudo que eu tenho por dentro me afoga à garganta. E eu fico como a mulher na foto.

Eu queria que você me amasse a ponto de eu poder lhe procurar só pra contar da mulher na foto. A mulher toda fodida na foto. Olhos de ressaca. Isso sim são olhos de ressaca. Ressaca de porre, sim, mas de mar também. São olhos que parecem a qualquer momento poder derramar. E derramaram. Logo depois de eu tirar a foto. Mas na foto ela ainda tem olhos inundados. Na foto, ela tem olhos de vaca indo pro abatedouro. E isso não é ofensa. É lindo. Ela é tão fodida que sabe do abatedouro. 

Foi a foto da mulher que me fez pensar em você. Mas só depois que eu deixei ela em preto e branco, pra revista, foi daí que os olhos brilharam. Foi como se eles estivessem esperando essa escala exata de cinzas para poder vir à tona. A mulher inteira veio à tona por esses olhos. As rugas, o nariz fino, as bochechas escavadas, a boca amassada.  Tudo no preto e branco fez mais sentido. O cigarro na mão dela ganhou outro ar. A fumaça se tornou um desfoque denso, nublando a cena inteira. O decote pregado de rugas, a alça de um sutiã aparecendo, o espelho de luzes, tão clichê com seus bicos quebrados.

Essa mulher, foi como se ela tivesse nascido pra foto, pro sentimento dessa foto. Como se ela tivesse vivido sempre em preto e branco, antiga e decadente, como num filme de Bertolucci. Essa única foto conta a história inteira dessa mulher, nem precisava de texto, de entrevista, de nada. Os boás depenados refletidos no espelho, as guimbas de cigarro derramadas do cinzeiro, a barata morta sobre a penteadeira, o whisky sem gelo, suspenso no ar, e a dor naquele rosto, a dor pura de encarar a própria vida e parar de fingir. A dor de assumir que é tudo só um abatedouro. Essa dor, cara, ela vai ficar doendo em mim.

Se eu tivesse seu telefone, esse seria o tipo de história que você gostaria de ouvir. O tipo que nos faria ficar acordados a noite toda, mesmo se você não pegasse ônibus nenhum. Mesmo se eu não disse, mais uma vez, o que eu sinto. Não a história da mulher, que é tão clichê quanto ela, mas a história dessa foto. Do que eu consegui capturar ali.

Você sempre me disse que eu havia nascido para isso, para fotografar. Que eu ainda ia ficar famoso e ter exposição só com o meu nome. Quando eu vi a foto dessa mulher, eu quase acreditei. Quase acreditei em você e na sua mania de me ver em um futuro bom. Depois tudo passou. A realidade veio, o salário de merda, a revista que não serve nem pra recolher cocô de cachorro. Essa foto, esses olhos, tudo se perdendo entre receitas de dieta e inaugurações idiotas. E eu me perdendo também, entre nossa distância e o silêncio do que eu deixei de dizer, entre o arrependimento e a certeza, só agora, do que eu sinto por você.

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uM SÉTIMO

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